Dia 19 de novembro é aniversário da morte do meu pai, escrevi este texto no
dia em que ele morreu: 19 de novembro de 99.
Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu
pai
me deixou? Apartamento? Não. Carro?Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não
conseguia pagar nem as próprias contas. Mas pagava a dos filhos.
Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem
herança, sem nada? As peças. As peças de teatro? De quem são as peças de
teatro? Meu pai era escritor. Escritor de teatro. Teatro? Teatro dá
dinheiro. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. Não, meu pai
não. Não ganhou muito dinheiro com teatro. O que ganhou, gastou. Deu
dinheiro pra muita gente. Meu pai não era um bom administrador. Era um
"maldito", diziam, um "marginal", mas não era bandido.
Por que
ele era maldito, afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não
escreveu peça pra ganhar dinheiro? "Ninguém tem direito de pedir a um
artista que não seja subversivo.". Meu pai escrevia sobre puta e cigano
sem dente. Puta, cigano sem dente e cafetão. Puta, cigano sem dente,
cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. Puta e cigano sem dente?
Puta, cigano sem dente e cafetão é chato, porra! Puta, cigano sem dente
e presidiários não dava dinheiro. Puta, cigano sem dente e
desempregados não tinha "patrocínio". Mas eu queria tênis americano, eu
queria camisa Lacoste, camisa Hang Ten.
Meu pai tinha que ganhar
dinheiro. Por que ele insistia em escrever peças sobre puta, cigano sem
dente, cafetão e presidiários? Ele insistia. Puta, cigano sem dente,
cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. E o ator e Jesus Cristo e
nada de "comédia comercial". Mas eu queria o meu "All Star", eu queria
ter todos os discos dos Beatles. "Pai, me dá dinheiro pra comprar uma
guitarra!" E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos
dos Beatles com o dinheiro dele (depois tive que comprar tudo de novo
em CD com o meu dinheiro e agora dá pra baixar de graça na internet).
Calça boca fina, camisa Hang Ten.
Onde ele arrumava dinheiro?
Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis "All Star"? Ele achava
que isso era "lixo americano". Ele achava que essa merda importada só
servia pra aumentar a nossa alienação. Meu pai era generoso. Ele não ia
deixar de me dar uma
coisa que eu queria, só porque ele achava que o
que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me
orientar, mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Onde ele
arrumava dinheiro?
Era época de ditadura. Escrever sobre puta,
cigano sem dente, cafetão e presidiários, incomodava os "poderosos".
Porra, ainda mais essa! Já escreve sobre coisa que não dá dinheiro, mas
além de não dar dinheiro, ainda é proibido? "Pai, me dá dinheiro pra
comprar disco do Bob Dylan!". Meu pai fez novela, fez Beto Rockfeller.
Mas Beto Rockfeller não conta, Beto Rockfeller era A novela, tinha a
cara dele, era revolucionária. Ele fazia o Vitório, o melhor amigo do
Beto. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tênis, uma guitarra, um...
Mas
A novela era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede
Globo: "Bandeira 2". Mas a Globo é no Rio, o Rio tem praia, ele cabulava
as gravações e ia pra praia: "Novela é chato pra caralho, porra! O
direito da gente coçar o saco é sagrado.", ele dizia. Ele ia pra praia e
lá ficava indignado porque naquela época a Globo não punha negros nas
novelas e quando punha era nos papéis de escravo ou mordomo. Meu pai
escreveu no jornal "A Última Hora" do Samuel Wainer, onde ele
trabalhava, que a Globo botou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra
ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer "Gabriela". A Globo
não gostou. Os "poderosos" da Rede Globo não gostaram. Fizeram ameaças,
juraram de morte. Em fim, a Globo não dava mais. Quando ele tava por lá,
ele bem que quis escrever novela. Afinal, eu queria dinheiro pra
comprar tênis, disco, guitarra. Mas novela de puta, cafetão e cigano sem
dente? Não, novela de puta, cafetão e cigano sem dente não dá. Se fosse
cigano com dente, musculoso e mau ator, aí dava. Agora, cigano sem
dente, pobre e fudido, não dá. Então não dá. "Na televisão brasileira,
artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro vivo."
Tudo bem, não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava,
não podia novela de cigano pobre, fudido e sem dente porque a T.V. não
queria. Então o que que podia?
Não podia nem chamar a Rede Globo
de racista, nem nada. A sinopse que ele fez pra uma novela quando
finalmente a Globo chamou ele, era de uma tribo de ciganos que
estupravam as filhas dos empresários e...bem, não aprovaram. E as portas
iam se fechando. E a ditadura ali, descendo o cassete. E eu queria o
meu tênis "All Star"! "Pai, porra, pai, eu quero dinheiro pra comprar
time de botão!" Mas enquanto os "poderosos" iam dizendo: Não! Não! Não!
Ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração, um "povo que berra
da geral sem nunca influir no resultado", um povo fudido, os marginais,
as putas, os ciganos sem dente, os presidiários, um povo que não
aparecia na T.V. "Pobre na Rede Globo almoça e janta todo dia". Pobre na
Rede Globo tem dente, favela na Rede Globo não tem rato. Esse povo não
era o povo dele.
O povo dele era entre outros, os sambistas, não
esses de agora, de terno Armani, cercados de loiras recauchutadas, mas,
os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Os sambistas
marginalizados, os que nunca gravaram CD. O Zeca da Casa Verde, o
Talismã, o Jangada, o Toniquinho Batuqueiro, o Geraldo Filme, enfim, os
que morrem na merda. "Silêncio, o sambista está dormindo, ele foi, mas
foi sorrindo, a notícia chegou quando anoiteceu..."
Então a
solução era fazer show com os sambistas. Meu pai contava histórias e os
sambistas cantavam suas músicas. Mas os sambistas eram crioulos. Negros?
Negro não podia. Em plena ditadura, Plino Marcos e "a negrada"? Que
papo é esse? Poder, podia, mas ninguém queria ver. "A burguesia não me
quer", ele dizia. Não podia peça de puta e novela de cigano sem dente
pobre e fudido, não podia dizer que a Globo era racista e ninguém queria
ver show com "a negrada". Então o que que podia? "Pai, me dá dinheiro
pra comprar figurinha do álbum Brasil Novo!"
A ditadura quando
eu tinha 7 anos tava em todo lugar, em cada esquina, no meio de cada
casal que fazia "amor com medo", nos porões do Doicodi e nas torturas
atrozes que muitos sofriam e eu lá: "Pai, me leva na Expoex, pai, me
leva na Expoex! A Expoex é a exposição do exército! Eu quero ver os
soldados, pai! Eu quero ver os tanques!" E ele me levava. Senão eu
chorava. Eu chorava se eu fosse censurado e não pudesse ver a Expoex.
Quando
eu tinha uns 12, 13 anos, lá estava o ônibus da escola pronto pra
partir pra Porto Seguro com todos os meus amiguinhos dentro e os pais,
do lado de fora, dando tchauzinho. E um amiguinho meu perguntou: "Quem é
seu pai?" Eu não tive dúvida: "Meu pai é aquele!" E o meu amiguinho:
"Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?" E
eu: "É, aquele." O meu amiguinho gritou: "Pai, esse aí é o pai do Leo!" E
a professora ouviu. Não, meu pai não era aquele de terno e gravata. Meu
pai era outro. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo. Meu pai
era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! "O pai do
Leo é mendigo, o pai do Leo é mendigo!" Afinal, quem trabalha tem que
usar terno e gravata.
Naquela época, um moleque de 12, 13 anos,
era um tapado. Ou isso era característica minha? "Pai, por que você não
trabalha? Pai, por que você dorme até meio dia? Pai, por que o pai do
Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa?
Pai, por que você anda de macacão e chinelo? Pai, me dá dinheiro pra
comprar..." E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de
"burguês". Eu estudei nas "melhores escolas". E olha que o meu pai
odiava escola. "A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que
as armas; por isso, a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes",
ele dizia. Ele saiu da escola na 4ª série do primário. Ele era canhoto.
Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. Ele
fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto.
Com 21 anos escreveu "Barrela!". "Me chamavam de analfabeto, como se
isso fosse privilégio meu, neste país." Meu avô queria que ele
trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria é subir num banco no meio
da praça e fazer números de palhaço. A família chegou até a pensar que
ele era débil mental. Meu pai foi pro circo. Ele amava o circo. Foi ser
palhaço de circo. Era o palhaço Frajola. A escola dele era o circo, a
minha era escola de "burguês". Mas como ele pagava a minha escola?
Foi
preso, foi solto, ameaçado, escrevia em jornais e revistas, quase todos
que existiam. Foi despedido de todos. A censura não queria meu pai
escrevendo em lugar nenhum. O que fazer? Sair do país? Ele não falava
direito nem o português. O que fazer? "Pai, me dá dinheiro pra comprar
uma calça Soft Machine!".
Uma vez o meu pai tava com uma dívida
muito grande, tava com dificuldade de pagar as prestações de um
apartamento que ele comprou pra gente. Daí um belo dia a Ford ligou pra
ele, convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra
pagar as dívidas e ficar bem tranqüilo por uns tempos. Meu pai não fazia
comercial.
Foi vender livro na rua. Nas portas dos teatros, nas
portas das faculdades, nos bares. Foi vender livro na porta de teatros
aonde se apresentavam artistas piores do que ele. Ele mesmo editava os
livros, ele mesmo ia vender. E podia? Não. Não podia. Várias vezes ele
foi expulso pelo "rapa" como um camelô comum. E ele chorava?
"Perseguido, o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. Eu fiz por
merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de
governador, quebrei vidraça de Banco. Foi uma farra. Não teve mau
tempo." Tinha. Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o
meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava
difícil, ou que era "foda". Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele
berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia. Meu pai é o
Plínio Marcos, porra! Bela merda, tem gente que nunca ouviu falar. Pra
muitos era só um fudido que não deu certo na vida, andando feito mendigo
pelo centro da cidade. Já morreu. Não era melhor do que ninguém. (Não?)
"Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem
caminhar."
Com 15 anos eu quis sair da escola. Ele disse: "Sai
logo dessa merda, eu te sustento até você encontrar sua vocação!" Eu
saí, eu saí daquela merda na metade do 1º colegial. Acho que qualquer
ser humano com o mínimo de sensibilidade, sabe: o ensino do jeito que é,
faz mal pra saúde. Eu devia ter uns 17 anos, era de madrugada. Eu
morava com ele. Eu tava na mesa da sala com o violão, triste, querendo
encontrar a minha vocação, sem saber o que dizer, inibido, pensando em
todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou
pra tomar água, me viu ali, não disse nada. Foi até o escritório, voltou
com um livro e leu um poema pra mim. "O corvo" do Edgar Allan Poe. Não
disse nada, só leu a poesia. Não foi o conteúdo, foi o tom da voz dele,
aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me
pegasse no colo. Foi dormir e me deixou ali, ouvindo o corvo dizer:
"para sempre!".
Eu virei escritor, com 21 anos escrevi "Dores de
Amores". Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser
mergulhador só porque o Kiko, meu irmão, é. A Aninha, minha irmã, era
tudo pra ele. Eu fiz vários shows com ele, pelas faculdades, pelos
teatros, pelos bares. Ele contava histórias e eu tocava violão. Meu pai
era generoso, violento, essencial, amava, amava tanto as pessoas que
chegava mesmo a odiá-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai não me
deixou apartamento, carro, dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me
serve. Eu tive e tenho que ganhar o meu próprio dinheiro. Até hoje,
muito pouca gente quer montar as suas peças e muito pouca gente quer
assistir. Meu pai já não precisa mais vender livro na rua, pra quem não
quer comprar, ou pra quem compra só pra "ajudar".
O que eu mais
queria é que ele me ouvisse agora: "Pai, você não me deixou nada que se
possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo.
Me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de
ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com uma puta
vontade de viver, sempre alegre, sempre fazendo piada das próprias
desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular
porra nenhuma." E se ele me escutasse ele diria, com um sorriso
malandro sem dentes, segurando as lágrimas: "Ê, Leo Lama!" Meu pai não
sabia receber elogios. Mas se ele me ouvisse agora, eu diria:
Pai,
eu preciso te contar, no seu velório foi muita gente, pai. No seu
velório, estiveram os maiores artistas do país. Médicos, políticos,
advogados, empresários, fãs, gente do povo, crianças e os sambistas. Os
sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus
amigos, seus inimigos, todos nós, todos nós te aplaudimos quando o seu
caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. Eu tava segurando uma
aba, o Kiko a outra. Você foi cremado, pai. Seus amigos fizeram
discursos emocionados, disseram: "Plínio Marcos, um grito de liberdade!"
Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia, onde você
passou sua infância. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno
estádio, uniformizado, com a mão no coração, vendo o cortejo passar. O
povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo
santista e nós no barco deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como
se você nem tivesse existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar,
mas de repente já era só o mar. E você foi, como todo mundo vai.
É
isso aí, pai: tanta gente te amava. Você sabia? Acho que ninguém te
amou tanto como a minha mãe. O amor dela ecoa em mim. Mas, e eu, pai? E
eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver
como você gostava. Eu não tenho a sua coragem. "A poesia, a magia, a
arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos." Eu
acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só
queria ser essencial, essencial como você. É difícil. Eu reclamo. A vida
ta uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As
pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu
me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. O mundo tá se
destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que
indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu
sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar,
pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho dessa gente, você sabe,
essa gente, os "homens-pregos", fixos no mesmo lugar. Essa gente quer
ter carro, pai, casa com piscina, essa gente quer ser rica e famosa,
essa gente quer ser musculosa e quer ter bunda, essa gente diz que
acredita em Deus e fode ele, essa gente não quer ser essencial, pai,
essa gente... essa é a minha gente, pai, às vezes eu me olho no espelho e
me acho parecido com essa gente. Me perdoa.
Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos: Leo Lama