Jessie Miranda

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Até nas flores encontra-se a diferença da sorte; umas enfeitam a vida, outras enfeitam a morte!

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Cantiga De Enganar

O mundo não vale o mundo, meu bem. 
Eu plantei um pé-de-sono, 
brotaram vinte roseiras. 
Se me cortei nelas todas 
e se todas me tingiram 
de um vago sangue jorrado 
ao capricho dos espinhos, 
não foi culpa de ninguém. 
O mundo, meu bem, não vale
a pena, e a face serena 
vale a face torturada. 
Há muito aprendi a rir, 
de quê? de mim? ou de nada? 
O mundo, valer não vale. 
Tal como sombra no vale, 
a vida baixa... e se sobe 
algum som deste declive, 
não é grito de pastor 
convocando seu rebanho. 
Não é flauta, não é canto 
de amoroso desencanto. 
Não é suspiro de grilo, 
voz noturna de correntes, 
não é mãe chamando filho, 
não é silvo de serpentes 
esquecidas de morder 
como abstratas ao luar. 
Não é choro de criança 
para um homem se formar. 

(...) 

Não é nem isto, nem nada. 
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros 
e dos encontros fortuitos, 
dos malencontros e das 
miragens que se condensam 
ou que se dissolvem noutras 
absurdas figurações. 
O mundo não tem sentido. 
O mundo e suas canções 
de timbre mais comovido 
estão calados, e a fala 
que de uma para outra sala 
ouvimos em certo instante 
é silêncio que faz eco 
e que volta a ser silêncio 
no negrume circundante. 
Silêncio: que quer dizer? 
Que diz a boca do mundo? 
Meu bem, o mundo é fechado, 
se não for antes vazio. 
O mundo é talvez: e é só. 
Talvez nem seja talvez. 
O mundo não vale a pena, 
mas a pena não existe. 
Meu bem, façamos de conta. 
de sofrer e de olvidar, 
de lembrar e de fruir, 
de escolher nossas lembranças 
e revertê-las, acaso 
se lembrem demais em nós. 
Façamos, meu bem, de conta
— mas a conta não existe — 
que é tudo como se fosse, 
ou que, se fora, não era. 
Meu bem, usemos palavras. 
façamos mundos: idéias. 
Deixemos o mundo aos outros 
já que o querem gastar. 
Meu bem, sejamos fortíssimos 
— mas a força não existe — 
e na mais pura mentira 
do mundo que se desmente, 
recortemos nossa imagem, 
mais ilusória que tudo, 
pois haverá maior falso 
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse 
dar-nos o gosto do sonho? 
Mas o sonho não existe. 
Meu bem, assim acordados, 
assim lúcidos, severos, 
ou assim abandonados, 
deixando-nos à deriva 
levar na palma do tempo 
— mas o tempo não existe, 
sejamos como se fôramos 
num mundo que fosse: o Mundo

(Carlos Drummond de Andrade)

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